quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

CAPITALISMO É PARA O POVO



ENTREVISTA - LUIGI ZINGALES
CAPITALISMO É PARA O POVO
Revista VEJA, 29/10/2014

O economista italiano, professor da Universidade de Chicago, critica o corporativismo e diz que facilitar o funcionamento do mercado não é o mesmo que favorecer grandes empresas
Giuliano Guandalini

Há cinco anos, o economista italiano Luigi Zingales publicou o artigo “Capitalism after the crisis” (O capitalismo depois da crise), no qual analisava o aumento do sentimento anticapitalista e das ideias contrárias à competição e ao livre mercado, mesmo nos Estados Unidos. O texto correu mundo sendo elogiado por sua mensagem central, segundo a qual muitos governos estão usando o poder para favorecer grandes empresas, e não para garantir o bom funcionamento do mercado e assim beneficiar os consumido res. As ideias de Zingales, professor da Universidade de Chicago, foram aprofundadas no livro A Capitalism for the People (Um Capitalismo para o Povo). O economista deixou a Itália, há mais de vinte anos, para fazer carreira acadêmica nos Estados Unidos justamente para fugir do capitalismo corrupto de seu país natal — e que ele vê agora avançar na economia americana. Para Edmund Phelps, professor de Columbia e ganhador do Nobel, Zingales “faz parte de um grupo pequeno, mas influente, de economistas que veem a economia americana cada dia mais corporativista e cada dia menos capitalista”. Zingales escreveu também Salvando o Capitalismo dos Capitalistas (2004), em parceria com o indiano Raghuram Rajan. Em entrevista a VEJA, reconhece semelhanças do Brasil com a Itália e defende a ideia de que os governos concentrem esforços na educação básica como a etapa primordial para o avanço sustentável das sociedades capitalistas.

VEJA - Depois da crise financeira de 2008, houve um avanço do sentimento anticapitalista, em diferentes países, e uma crítica intensa à desregulamentação dos mercados. Essa reação perdeu força?
Acredito que essa onda contrária ao capitalismo e ao livre mercado não tenha perdido intensidade. Em muitos países desenvolvidos, esse sentimento é ainda mais forte por causa da queda no ritmo de crescimento e também do aumento na desigualdade de renda ocorri do nos últimos anos. Compreendo, em parte, essa reação. Mas, para mim, a questão crucial está no aumento do chamado capitalismo corporativista e de compadrio, um sistema no qual as grandes empresas possuem ligações muito próximas com o governo e também com os congressistas, favorecendo a aplicação de políticas contrárias à concorrência. Um sistema assim, na minha avaliação, não cria um ambiente que incentive a igualdade de oportunidades e a com petição na economia.

VEJA - O senhor, em suas análises, faz uma distinção entre políticas pró-mercado e políticas pró-empresas. Para um leigo, ambas soam como a mesma coisa. Qual a diferença?
E fácil compreender a distinção entre os conceitos. Os homens e mulheres de negócios, quando administram uma empresa, procuram aumentar os seus lucros. Isso é natural. O problema está quando usam a sua proximidade com o governo, graças ao seu poder financeiro e à ação de seus lobbies, para impedir o ingresso de novos competido res no mercado e assim lucrarem mais. Os executivos das grandes companhias internacionais são sempre grandes defensores do livre-comércio quando de sejam ingressar em um novo mercado. Uma vez instalados, entretanto, passam a defender barreiras protecionistas. Por isso, para criar um ambiente favorável ao crescimento e à inovação, é preciso que existam políticas pró-mercado, ou seja, a favor da competição e tendo em vista o interesse dos consumidores, e não pró-empresas.

VEJA - O inegável avanço na desigualdade de renda nos Estados Unidos e em outros países ricos é um problema que precisa ser enfrentado. Qual a melhor maneira de fazer isso?
Através da redução da desigualdade de oportunidades. Com certeza o principal nó no caso brasileiro está na educação. Se duas pessoas têm um bom nível educacional, há uma grande probabilidade de não existir uma disparidade expressiva na renda de ambas. A ironia, no Brasil, é que a educação elementar pública é ruim, e são os mais ricos que chegam às melhores universidades públicas, uma situação que contribui para aprofundar a desigualdade. A primeira iniciativa que eu adotaria no Brasil, com o objetivo de reduzir efetivamente a desigualdade nas oportunidades, seria aprimorar a educação básica nas escolas públicas. Isso vale para outros países também, entre eles alguns desenvolvidos. Nos Estados Unidos, a qualidade do ensino básico e médio caiu profundamente nos últimos anos. Cuidar da educação, e, portanto, agir no sentido de reduzir a desigualdade nas oportunidades, é um passo fundamental para diminuir a injustiça social.

VEJA - Qual a sua avaliação de políticas tributárias como as defendidas polo economista francês Thomas Piketty, para quem o imposto sobre os rendimentos dos mais ricos deveria ser superior a 70%?
Sou contrário a níveis tão eleva dos de imposto de renda. Em um mundo com liberdade de circulação de capitais e também de trabalhadores, não vejo como seria possível implementar um sistema tributário assim. Seria bastante difícil pô-lo em prática. Não acredito que seja viável nem que seja saudável. Mesmo na França o governo do socialista François Hollande acabou voltando atrás nessa questão. Há muita margem para eliminar brechas no sistema tributário e torná-lo mais equilibrado sem a necessidade de aumentar as ali- quotas nessa magnitude.

VEJA - Quais são os limites e a natureza das intervenções dos governos quando eles chamam a si a responsabilidade de corrigir as distorções do mercado?
Em primeiro lugar, é preciso haver transparência. Quanto mais transparente o setor público, menores as possibilidades de serem feitos acordos escusos. O problema não está apenas na corrupção. Muito dinheiro pode ser feito pelas empresas próximas do governo e dos congressistas. Existem duas consequências perniciosas. Em primeiro lugar, ocorre obviamente um desperdício de recursos públicos. Além disso, cria-se um incentivo para as empresas se preocuparem mais em fazer lobby do que em investir em produtividade. Esse, para mim, é o principal problema. Em razão disso, idealisticamente todos os subsídios deveriam ser eliminados, porque estimulam esse tipo de relação entre as empresas e o governo. As políticas públicas mais saudáveis, ao contrário, são aquelas que reduzem as barreiras aos investimentos e ao ingresso de um maior número de competidores. E assim que age um governo decidido a fazer o mercado funcionar melhor. Mas o que se nota é que, quando a concentração no merca do é excessiva, os governos tendem a adotar políticas que beneficiam um pequeno grupo de grandes empresas em detrimento dos consumidores e da economia como um todo.

VEJA - No que diz respeito ao desenvolvimento econômico, qual é o papel essencial do Estado em uma democracia moderna?
Em primeiro lugar, o governo deve ser um árbitro da economia. Ou seja, deve agir para que a disputa ocorra de maneira limpa e justa. Deve ser o juiz, mas não um dos jogadores. Além disso, o Estado deve também prover uma rede de amparo e proteção social. Acredito que um Estado de bem-estar com boas políticas seja vital para a criação de oportunidades, o que, ao final, acabará incentivando a competição e o aumento da produtividade na economia.

VEJA - Existe um tamanho ideal para o governo?
Não acredito que se possa fazer uma avaliação simplesmente medindo o tamanho dos gastos públicos em relação ao PIB para saber se o Estado está inflado ou não, O fundamental, para o desenvolvimento de uma economia, é que o governo propicie um ambiente favorável à competição, em vez de criar ainda mais distorções e desigualdade de oportunidades. Dos países escandinavos chegam os melhores exemplos. Eles possuem um Estado de bem-estar notável, seus gastos públicos são elevados, mas o objetivo central de suas políticas é proteger os trabalhadores, e não as empresas. Considero importante essa rede de proteção, porque ela contribuiu para manter a economia saudável e preservar o crescimento a longo prazo. Em outros países — entre eles, em muitos aspectos, o Brasil —, boa parte dos recursos públicos é usada para ajudar grandes empresários, por meio, muitas vezes, da concessão de subsídios. Portanto, o tamanho do Estado em si é um indicador insuficiente para definir sua adequação. E preciso verificar se ele cumpre sua função de estimular a competição, se age em benefício do mercado, e não apenas de algumas grandes empresas.

VEJA - O que torna um imposto bom ou ruim?
Os tributos tradicionais, como aqueles sobre o consumo e sobre a renda das pessoas e das empresas, impactam negativamente o rendimento e desestimulam os investimentos. São os impostos ruins. Existem outros impostos, em contrapartida, os “pigouvianos” (em relação economista inglês Arthur Pigou, morto em 1959), cujos efeitos são positivos. Essas taxações visam a corrigir as distorções e imperfeições do mercado, como é o caso de tributar fortemente as indústrias poluidoras ou cujos produtos fazem mal à saúde. Até um certo limite, é óbvio, impostos sobre combustíveis e cigarros são, portanto, bons impostos, porque fazem as pessoas assumir os custos decorrentes de suas atividades individuais ou hábitos que prejudicam a sociedade.

VEJA - No seu país natal, a Itália, todos concordam que reformas precisam ser feitas para tirar o peso excessivo do Estado dos ombros das pessoas. No Brasil também. Mas tanto aqui como lá nada muda. Por quê?
Na Itália, existe uma espécie de acordo tácito entre as diversas correntes políticas. De um lado, as esquerdas, em nome dos trabalhadores, são contrárias às reformas porque, afirmam, haveria perda de direitos e aumento do desemprego. Por outro lado, os empresários, sobretudo aqueles com relações estreitas com o governo e os parlamentares, são contrários a reformas que representem a entrada de novos competidores no mercado. Não podemos nos esquecer de que o nepotismo foi inventado em Roma, na Idade Média, porque a Igreja, que controlava o governo, não queria saber de concorrentes — especialmente se fossem mais competentes. A oposição entre sindicatos e empresários, portanto, quase sempre não passa de jogo de aparências. As duas partes, no fundo, sustentam-se por objetivos comuns. No final, ganha apelo o discurso anticapitalista e anticompetição. Assim, fica difícil aprovar as reformas que beneficiariam a maioria da população. No Brasil não é muito diferente. Por essa razão, eu, particularmente, acreditava que Marina Silva, por sua origem na esquerda e sua compreensão do funcionamento do mercado, teria mais chances do que a presidente Dilma Rousseff de fazer a defesa das reformas e vê-las aprovadas.

VEJA - Os países europeus atingidos pela crise que conseguiram fazer algumas reformas e ajustes para se tornar mais competitivos estão salvos?
Temo que não. Sem reformas mais profundas, vai se tornar insustentável a economia de países como a Grécia e Portugal, e mesmo a Espanha e a Itália. Parafraseando Herbert Stein (economista americano, morto em 1999), se algo é insustentável, algum dia não se sustentará.

VEJA - O senhor demonstra preocupação com o crescimento do sentimento anticapitalista nos Estados Unidos. Não se trata de algo cíclico, como consequência da crise financeira?
Não resta dúvida de que a crise deu força ao discurso anticapitalista. O aumento da desigualdade também contribuiu para que surgissem movimentos como o Occupy Wall Street. O outro lado da moeda está no Tea Party, cujos seguidores combatem o excesso de intervenção do governo na vida econômica, enquanto o Occupy Wall Street se coloca contra o excesso de intromissão das grandes corporações no funcionamento do governo. Esses dois grupos antagônicos, sou obrigado a concordar, estão, cada um à sua maneira, certos. Por mais simplista que pareça, é evidente que será preciso encontrar uma saída entre o governo inflado e ineficiente e o modelo em que as grandes companhias dão as cartas. O preocupante, de qualquer maneira, é o avanço do capitalismo corporativista e de compadrio nos Estados Unidos. Como italiano, conheço os riscos que isso acarreta. Os Estados Unidos estão ficando cada vez mais parecidos com a Itália — e infelizmente não falo da comida.

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