ENTREVISTA - LUIGI
ZINGALES
CAPITALISMO É PARA O POVO
Revista VEJA, 29/10/2014
O economista italiano,
professor da Universidade de Chicago, critica o corporativismo e diz que
facilitar o funcionamento do mercado não é o mesmo que favorecer grandes
empresas
Giuliano Guandalini
Há cinco anos, o
economista italiano Luigi Zingales publicou o artigo “Capitalism after the
crisis” (O capitalismo depois da crise), no qual analisava o aumento do
sentimento anticapitalista e das ideias contrárias à competição e ao livre
mercado, mesmo nos Estados Unidos. O texto correu mundo sendo elogiado por sua
mensagem central, segundo a qual muitos governos estão usando o poder para
favorecer grandes empresas, e não para garantir o bom funcionamento do mercado
e assim beneficiar os consumido res. As ideias de Zingales, professor da
Universidade de Chicago, foram aprofundadas no livro A Capitalism for the
People (Um Capitalismo para o Povo). O economista deixou a Itália, há mais de
vinte anos, para fazer carreira acadêmica nos Estados Unidos justamente para
fugir do capitalismo corrupto de seu país natal — e que ele vê agora avançar na
economia americana. Para Edmund Phelps, professor de Columbia e ganhador do
Nobel, Zingales “faz parte de um grupo pequeno, mas influente, de economistas
que veem a economia americana cada dia mais corporativista e cada dia menos
capitalista”. Zingales escreveu também Salvando o Capitalismo dos Capitalistas
(2004), em parceria com o indiano Raghuram Rajan. Em entrevista a VEJA,
reconhece semelhanças do Brasil com a Itália e defende a ideia de que os
governos concentrem esforços na educação básica como a etapa primordial para o
avanço sustentável das sociedades capitalistas.
VEJA - Depois da crise
financeira de 2008, houve um avanço do sentimento anticapitalista, em
diferentes países, e uma crítica intensa à desregulamentação dos mercados. Essa
reação perdeu força?
Acredito que essa onda
contrária ao capitalismo e ao livre mercado não tenha perdido intensidade. Em
muitos países desenvolvidos, esse sentimento é ainda mais forte por causa da
queda no ritmo de crescimento e também do aumento na desigualdade de renda
ocorri do nos últimos anos. Compreendo, em parte, essa reação. Mas, para mim, a
questão crucial está no aumento do chamado capitalismo corporativista e de
compadrio, um sistema no qual as grandes empresas possuem ligações muito
próximas com o governo e também com os congressistas, favorecendo a aplicação
de políticas contrárias à concorrência. Um sistema assim, na minha avaliação,
não cria um ambiente que incentive a igualdade de oportunidades e a com petição
na economia.
VEJA - O senhor, em suas
análises, faz uma distinção entre políticas pró-mercado e políticas
pró-empresas. Para um leigo, ambas soam como a mesma coisa. Qual a diferença?
E fácil compreender a
distinção entre os conceitos. Os homens e mulheres de negócios, quando
administram uma empresa, procuram aumentar os seus lucros. Isso é natural. O
problema está quando usam a sua proximidade com o governo, graças ao seu poder
financeiro e à ação de seus lobbies, para impedir o ingresso de novos competido
res no mercado e assim lucrarem mais. Os executivos das grandes companhias
internacionais são sempre grandes defensores do livre-comércio quando de sejam
ingressar em um novo mercado. Uma vez instalados, entretanto, passam a defender
barreiras protecionistas. Por isso, para criar um ambiente favorável ao
crescimento e à inovação, é preciso que existam políticas pró-mercado, ou seja,
a favor da competição e tendo em vista o interesse dos consumidores, e não
pró-empresas.
VEJA - O inegável avanço
na desigualdade de renda nos Estados Unidos e em outros países ricos é um
problema que precisa ser enfrentado. Qual a melhor maneira de fazer isso?
Através da redução da
desigualdade de oportunidades. Com certeza o principal nó no caso brasileiro
está na educação. Se duas pessoas têm um bom nível educacional, há uma grande
probabilidade de não existir uma disparidade expressiva na renda de ambas. A
ironia, no Brasil, é que a educação elementar pública é ruim, e são os mais
ricos que chegam às melhores universidades públicas, uma situação que contribui
para aprofundar a desigualdade. A primeira iniciativa que eu adotaria no
Brasil, com o objetivo de reduzir efetivamente a desigualdade nas
oportunidades, seria aprimorar a educação básica nas escolas públicas. Isso
vale para outros países também, entre eles alguns desenvolvidos. Nos Estados
Unidos, a qualidade do ensino básico e médio caiu profundamente nos últimos
anos. Cuidar da educação, e, portanto, agir no sentido de reduzir a
desigualdade nas oportunidades, é um passo fundamental para diminuir a
injustiça social.
VEJA - Qual a sua
avaliação de políticas tributárias como as defendidas polo economista francês
Thomas Piketty, para quem o imposto sobre os rendimentos dos mais ricos deveria
ser superior a 70%?
Sou contrário a níveis
tão eleva dos de imposto de renda. Em um mundo com liberdade de circulação de
capitais e também de trabalhadores, não vejo como seria possível implementar um
sistema tributário assim. Seria bastante difícil pô-lo em prática. Não acredito
que seja viável nem que seja saudável. Mesmo na França o governo do socialista
François Hollande acabou voltando atrás nessa questão. Há muita margem para
eliminar brechas no sistema tributário e torná-lo mais equilibrado sem a
necessidade de aumentar as ali- quotas nessa magnitude.
VEJA - Quais são os
limites e a natureza das intervenções dos governos quando eles chamam a si a
responsabilidade de corrigir as distorções do mercado?
Em primeiro lugar, é
preciso haver transparência. Quanto mais transparente o setor público, menores
as possibilidades de serem feitos acordos escusos. O problema não está apenas
na corrupção. Muito dinheiro pode ser feito pelas empresas próximas do governo
e dos congressistas. Existem duas consequências perniciosas. Em primeiro lugar,
ocorre obviamente um desperdício de recursos públicos. Além disso, cria-se um
incentivo para as empresas se preocuparem mais em fazer lobby do que em
investir em produtividade. Esse, para mim, é o principal problema. Em razão
disso, idealisticamente todos os subsídios deveriam ser eliminados, porque
estimulam esse tipo de relação entre as empresas e o governo. As políticas
públicas mais saudáveis, ao contrário, são aquelas que reduzem as barreiras aos
investimentos e ao ingresso de um maior número de competidores. E assim que age
um governo decidido a fazer o mercado funcionar melhor. Mas o que se nota é
que, quando a concentração no merca do é excessiva, os governos tendem a adotar
políticas que beneficiam um pequeno grupo de grandes empresas em detrimento dos
consumidores e da economia como um todo.
VEJA - No que diz
respeito ao desenvolvimento econômico, qual é o papel essencial do Estado em
uma democracia moderna?
Em primeiro lugar, o
governo deve ser um árbitro da economia. Ou seja, deve agir para que a disputa
ocorra de maneira limpa e justa. Deve ser o juiz, mas não um dos jogadores.
Além disso, o Estado deve também prover uma rede de amparo e proteção social.
Acredito que um Estado de bem-estar com boas políticas seja vital para a
criação de oportunidades, o que, ao final, acabará incentivando a competição e
o aumento da produtividade na economia.
VEJA - Existe um tamanho
ideal para o governo?
Não acredito que se possa
fazer uma avaliação simplesmente medindo o tamanho dos gastos públicos em
relação ao PIB para saber se o Estado está inflado ou não, O fundamental, para
o desenvolvimento de uma economia, é que o governo propicie um ambiente
favorável à competição, em vez de criar ainda mais distorções e desigualdade de
oportunidades. Dos países escandinavos chegam os melhores exemplos. Eles
possuem um Estado de bem-estar notável, seus gastos públicos são elevados, mas
o objetivo central de suas políticas é proteger os trabalhadores, e não as empresas.
Considero importante essa rede de proteção, porque ela contribuiu para manter a
economia saudável e preservar o crescimento a longo prazo. Em outros países —
entre eles, em muitos aspectos, o Brasil —, boa parte dos recursos públicos é
usada para ajudar grandes empresários, por meio, muitas vezes, da concessão de
subsídios. Portanto, o tamanho do Estado em si é um indicador insuficiente para
definir sua adequação. E preciso verificar se ele cumpre sua função de
estimular a competição, se age em benefício do mercado, e não apenas de algumas
grandes empresas.
VEJA - O que torna um
imposto bom ou ruim?
Os tributos tradicionais,
como aqueles sobre o consumo e sobre a renda das pessoas e das empresas,
impactam negativamente o rendimento e desestimulam os investimentos. São os
impostos ruins. Existem outros impostos, em contrapartida, os “pigouvianos” (em
relação economista inglês Arthur Pigou, morto em 1959), cujos efeitos são
positivos. Essas taxações visam a corrigir as distorções e imperfeições do
mercado, como é o caso de tributar fortemente as indústrias poluidoras ou cujos
produtos fazem mal à saúde. Até um certo limite, é óbvio, impostos sobre
combustíveis e cigarros são, portanto, bons impostos, porque fazem as pessoas
assumir os custos decorrentes de suas atividades individuais ou hábitos que
prejudicam a sociedade.
VEJA - No seu país natal,
a Itália, todos concordam que reformas precisam ser feitas para tirar o peso
excessivo do Estado dos ombros das pessoas. No Brasil também. Mas tanto aqui
como lá nada muda. Por quê?
Na Itália, existe uma
espécie de acordo tácito entre as diversas correntes políticas. De um lado, as
esquerdas, em nome dos trabalhadores, são contrárias às reformas porque,
afirmam, haveria perda de direitos e aumento do desemprego. Por outro lado, os
empresários, sobretudo aqueles com relações estreitas com o governo e os
parlamentares, são contrários a reformas que representem a entrada de novos
competidores no mercado. Não podemos nos esquecer de que o nepotismo foi
inventado em Roma, na Idade Média, porque a Igreja, que controlava o governo,
não queria saber de concorrentes — especialmente se fossem mais competentes. A
oposição entre sindicatos e empresários, portanto, quase sempre não passa de
jogo de aparências. As duas partes, no fundo, sustentam-se por objetivos
comuns. No final, ganha apelo o discurso anticapitalista e anticompetição.
Assim, fica difícil aprovar as reformas que beneficiariam a maioria da
população. No Brasil não é muito diferente. Por essa razão, eu, particularmente,
acreditava que Marina Silva, por sua origem na esquerda e sua compreensão do
funcionamento do mercado, teria mais chances do que a presidente Dilma Rousseff
de fazer a defesa das reformas e vê-las aprovadas.
VEJA - Os países europeus
atingidos pela crise que conseguiram fazer algumas reformas e ajustes para se
tornar mais competitivos estão salvos?
Temo que não. Sem
reformas mais profundas, vai se tornar insustentável a economia de países como
a Grécia e Portugal, e mesmo a Espanha e a Itália. Parafraseando Herbert Stein
(economista americano, morto em 1999), se algo é insustentável, algum dia não
se sustentará.
VEJA - O senhor demonstra
preocupação com o crescimento do sentimento anticapitalista nos Estados Unidos.
Não se trata de algo cíclico, como consequência da crise financeira?
Não resta dúvida de que a
crise deu força ao discurso anticapitalista. O aumento da desigualdade também
contribuiu para que surgissem movimentos como o Occupy Wall Street. O outro
lado da moeda está no Tea Party, cujos seguidores combatem o excesso de
intervenção do governo na vida econômica, enquanto o Occupy Wall Street se
coloca contra o excesso de intromissão das grandes corporações no funcionamento
do governo. Esses dois grupos antagônicos, sou obrigado a concordar, estão,
cada um à sua maneira, certos. Por mais simplista que pareça, é evidente que
será preciso encontrar uma saída entre o governo inflado e ineficiente e o
modelo em que as grandes companhias dão as cartas. O preocupante, de qualquer
maneira, é o avanço do capitalismo corporativista e de compadrio nos Estados
Unidos. Como italiano, conheço os riscos que isso acarreta. Os Estados Unidos
estão ficando cada vez mais parecidos com a Itália — e infelizmente não falo da
comida.